Nova lei sobre uso sustentável da biodiversidade brasileira pede regulamentação

A publicação da Lei nº. 13.123/2015, que entra em vigor a partir do dia 17 de novembro de 2015, é resultado de discussões sobre os dilemas apresentados pela antiga legislação de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado, qual seja a Medida Provisória nº. 2.186-16/2001, que já completa 15 anos. A nova norma terá a missão de trazer segurança jurídica aos usuários do sistema e promover o uso sustentável da biodiversidade brasileira. Vale mencionar, porém, que ela ainda depende da publicação do Decreto Regulamentador para suprir algumas lacunas e estabelecer os procedimentos administrativos para a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico com ativos da biodiversidade brasileira.

A seguir, apontaremos três temas importantes trazidos pela nova legislação, quais sejam: os principais conceitos, a repartição de benefícios e as regras para a adequação e regularização das atividades de acesso.

Principais conceitos da Lei nº. 13.123/2015

O conceito estabelecido na Convenção sobre a Diversidade Biológica é mais restrito que o conceito estabelecido na Constituição Federal. Verifica-se que a Convenção sobre a Diversidade Biológica restringe-se apenas ao DNA ou RNA, ao contrário da Constituição Federal, que leva em consideração todo o material que contiver qualquer forma de informação genética (LAVRATTI, 2004, p. 02).

Por sua vez, a Medida Provisória nº. 2.186-16 de 2001 segue a diretriz estabelecida pela Constituição Federal de 1988, quando adota o termo “patrimônio genético”, ao contrário de material genético ou recursos genéticos previsto na Convenção sobre a Diversidade Biológica (LAVRATTI, 2004, p. 02).

Comparando-se a Medida Provisória nº. 2.186-16/2001 com a nova Lei nº. 13.123/2015, observa-se a inclusão no conceito de patrimônio genético de “espécies de outra natureza”, além das espécies vegetais, animais e microbianas – restando dúvida quanto ao que seriam estas espécies de outras naturezas.

Com relação ao conhecimento tradicional associado, as diferenças mais relevantes do antigo para o novo conceito estão na exclusão da forma da prática do conhecimento. A medida provisória estabelecia a sua forma individual ou coletiva e a atual não mais o estabelece. Outro ponto importante foi a inclusão da indicação que se configura conhecimento tradicional associado o uso direto e também indireto. Destaca-se aqui um avanço com a inclusão dos agricultores tradicionais, além das comunidades indígenas e comunidades tradicionais, dentro do conceito de provedor (art. 2º, II e V, da Lei nº. 13.123/2015). Além disso, a nova legislação traz um conceito novo quando estabelece a existência do conhecimento tradicional associado de origem não identificável: “[…] conhecimento tradicional associado em que não há a possibilidade de vincular a sua origem a, pelo menos, uma população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional.”

Quanto ao acesso, a Medida Provisória estabelecia que a obtenção da amostra configurava acesso ao patrimônio genético, até a publicação da Orientação Técnica no. 01, de 24 de setembro de 2003. A nova lei busca simplificar, estabelecendo o acesso ao patrimônio genético como a pesquisa ou o desenvolvimento tecnológico realizado sobre a amostra do patrimônio genético.

Nesse sentido, outro ponto de destaque trazido pela nova lei é a exclusão da atividade de bioprospecção como acesso, mantendo apenas os conceitos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico (art. 2º, X e XI, da Lei 13.123/2015).

Ademais, a nova legislação estabelece novo procedimento para a realização do acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado, sendo necessário o cadastro e não mais a autorização prévia do órgão competente.

Muitos conceitos apresentados pela nova lei têm como objetivo facilitar o processo de interpretação e operacionalização, entretanto, alguns dependem da publicação da regulamentação para que se alcance a segurança jurídica e regulatória.

Repartição de benefícios

A repartição dos benefícios (RB) oriundos do acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado é um assunto que ainda deixou algumas lacunas para o regulamento.

Com efeito, a lei prevê que a RB incidirá sobre a receita líquida do fabricante do produto acabado, quando a espécie da biodiversidade acessada for um dos elementos principais de agregação de valor do produto. Ora, a definição do que seja “elemento principal de agregação de valor” passará necessariamente pela definição em regulamento do que é “determinante para a existência das características funcionais” e “apelo mercadológico”, algo que a lei não detalhou (art. 2º, XVIII, da Lei 13.123/2015).

Neste sentido, é preciso clareza quanto a estas definições no decreto, de maneira que não haja margem a interpretações diversas e desigualdade concorrencial entre empresas para a mesma situação fática. O elemento da biodiversidade que é determinante para as características funcionais do produto deveria ser aquele que é responsável pelo princípio ativo ou função principal que determina a ação para a qual o produto acabado foi criado. Quanto ao apelo mercadológico, este deveria ser toda e qualquer referência à biodiversidade, direta ou indireta, que seja feita em propagandas ou em rótulos do produto (à exceção, é claro, da descrição dos ingredientes do produto que consta de todo rótulo).

Sendo a espécie acessada elemento principal de agregação de valor do produto acabado, a RB será devida, e então será preciso pensar em como calculá-la. O seu cálculo dependerá do tipo de acesso que foi realizado:

  1. Se for feito acesso ao patrimônio genético, o usuário poderá escolher entre realizar a RB monetária ou não monetária. Se optar pela RB monetária, o valor a ser pago será de 1% sobre a receita líquida do fabricante do produto acabado, ou um valor menor a ser fixado em acordo setorial. Se optar pela RB não monetária – por meio da implantação de projetos, capacitações ou distribuição de produtos -, o valor a ser investido será de 0,75% sobre a receita líquida do fabricante do produto acabado, ou um valor menor a ser fixado em acordo setorial.
  2. Se for feito acesso a conhecimento tradicional associado de origem identificável, o usuário repartirá os benefícios de forma justa e equitativa (não há parâmetro detalhado na lei) aos detentores do conhecimento; além disso, deverá destinar 0,5% sobre a receita líquida (com ou sem acordo setorial) ao Fundo Nacional de Repartição de Benefícios (“FNRB”), para que outros detentores do conhecimento tradicional associado possam acessá-lo.
  3. Se for feito acesso a conhecimento tradicional associado de origem não identificável, o usuário somente poderá realizar a RB monetária, no valor de 1% sobre a receita líquida do fabricante do produto acabado, ou um valor menor a ser fixado em acordo setorial.

Quanto à RB monetária, é importante destacar que a racionalidade da medida provisória, segundo a qual a RB era sempre destinada ao provedor, na nova lei se alterou; não há mais a figura do provedor para acesso a patrimônio genético ou a conhecimento tradicional associado de origem não identificável. Por isso, o valor da RB monetária agora deverá ser destinado ao FNRB, sendo que os interessados somente poderão acessá-lo para fins de aplicação em conservação e uso sustentável da biodiversidade. Considerando a sua importância, se mostra relevante pensar numa proposta de governança sólida para o FNRB, de maneira que ele funcione de forma simplificada e com a menor burocracia possível.

Quanto à RB não monetária, não está claro na lei se o destinatário será definido unilateralmente pela União ou se ainda poderá ser indicado pelo usuário. Neste sentido, o decreto deveria prever que os destinatários da RB não monetária deverão ser escolhidos pelos usuários, dentro de um universo de agricultores familiares, comunidades tradicionais, povos indígenas, quilombolas, instituições de pesquisa ou ONGs que atuem em conservação. A escolha é necessária uma vez que as empresas terão de ser parceiras dos destinatários na aplicação dos recursos, e para tanto terá de haver uma boa relação entre eles.  

Adequação e regularização

Com a proximidade da entrada em vigor da nova lei, surgem muitas dúvidas sobre o processo de regularização ou adequação, bem como a fase de transição dos pedidos de autorização que atualmente tramitam no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), seguindo os procedimentos da Medida Provisória.

A Lei 13.123/2015 tratou expressamente desses temas no seu Capítulo VII, cabendo ao usuário, que tem seu pedido de autorização ou regularização de acesso e de remessa ainda em tramitação, a obrigação de reformular seu pedido de cadastro ou de autorização de acesso ou remessa, conforme o caso, no prazo de um ano da entrada em vigor da Lei.

Deverão adequar-se, nos termos da Lei, os usuários que realizaram, a partir de 30 de junho de 2000, as atividades de acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado e exploraram economicamente produto acabado ou material reprodutivo oriundo de acesso de acordo com a Medida Provisória 2.186-16.

A adequação se dará pela adoção do cadastro no CGEN, notificação de produto acabado ou material reprodutivo objeto da exploração econômica e repartição dos benefícios referentes à exploração econômica realizada a partir da data de entrada em vigor da Lei, exceto quando tenha feito na forma da Medida Provisória.

A regularização também deverá ser efetuada no prazo de um ano da disponibilização do Cadastro do CGEN, devendo se regularizar o usuário que, entre 30 de junho de 2000 e a data de entrada em vigor da Lei, realizou, em desacordo com a MP, as atividades de acesso, exploração econômica de produto ou processo, remessa ao exterior de amostra, divulgação, transmissão ou retransmissão de dados ou informações de conhecimento tradicional associado.

Em ambos os casos, regularização e adequação, o que se busca é a adequação à nova norma; no entanto, é essencial tratamento diferenciado a quem atendeu a MP, ou seja, a quem cabe adequação, devendo continuar a vigorar os contratos firmados, cabendo a seu critério repartir benefícios de acordo com o pactuado, bem como a isenção de assinatura do Termo de Compromisso. Nesses dois pontos essenciais ao usuário que estava regular aos olhos da atual legislação o novo marco legal foi omisso, outorgando ao usuário da regularização (que realizou acesso sem a autorização do CGEN), o direito de escolher entre um regime ou outro, mas não dando o mesmo tratamento aos usuários que já possuem autorização do CGEN para suas atividades.

A regularização está condicionada à assinatura de Termo de Compromisso e tal termo suspende a aplicação e exigibilidade de sanções administrativas previstas na MP e reduz em 90% as multas aplicadas com base no Decreto nº 5.459, sendo que não ficou expresso na Lei que estes benefícios se estendem aos casos de adequação, omissão que necessita ser suprida pelo Regulamento.

Parece-nos que o legislador não deve ter o intuito de prejudicar quem já atende a MP, no entanto, omitiu esses benefícios provenientes da assinatura do Termo de Compromisso aos usuários já regulares. Assim, entendemos que a regulamentação deve suprir essa lacuna, estendendo esses benefícios, por analogia, aos usuários que necessitem somente se adequar, independentemente da assinatura do Termo de Compromisso, pois este é cabível somente aos usuários que não atenderam a MP.

Considerações

Para que a nova lei atinja seus objetivos de desburocratização do processo e, consequentemente, o incentivo ao uso da biodiversidade brasileira, o Decreto Regulamentador deve superar as lacunas apresentadas pela Lei nº. 13.123/2015, bem como apresentar procedimentos administrativos claros para que o usuário do sistema, principalmente as universidades, instituições de pesquisa e empresas, consigam realizar pesquisas e desenvolvimento de produtos com segurança jurídica e regulatória.

Ademais, a nova lei tem como missão assegurar a preservação da biodiversidade e do conhecimento tradicional associado a partir dos recursos advindos da repartição de benefícios, beneficiando as comunidades tradicionais, povos indígenas e agricultores tradicionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LAVRATTI, P. O acesso ao patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais associados no Brasil. Revista eletrônica de derecho ambiental. Acesso em: 12 de abril de 2015, em: http://huespedes.cica.es/aliens/gimadus/12-13/PATRIMONIO%20GENETICO%20BRASIL.htm.

Por Ana Paula Rodrigues Viana Gestora de Ciências na Natura Inovação, mestranda em Gestão e Auditoria Ambiental pela Fundação Ibero Americana – Universidad Miguel de Cervantes

Por Patricia Vicente de Paula Kodaira Coordenadora Jurídica na Natura Cosméticos

Por Marina Montes Bastos Advogada ambiental na Natura Cosméticos, mestre em Direito e Desenvolvimento pela FGV Direito SP

Fonte: http://jota.info/nova-lei-sobre-uso-sustentavel-da-biodiversidade-brasileira-pede-regulamentacao

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